quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Dilúvio - Gilgamesh




"Conheces a cidade de Shurrupak, que fica às margens do Eufrates? A cidade envelheceu, assim como os deuses que ah moravam. Havia Anu, o senhor do firmamento e pai da cidade; o guerreiro Enhl, seu conselheiro; Ninurta, o ajudante; e Ennugi, que vigiava os canais. Entre eles também se encontrava Ea. Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: 'O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.' Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana. Foi o que Enlil fez, mas Ea, por causa de sua promessa, me avisou num sonho. Ele denunciou a intenção dos deuses sussurrando para minha casa de colmo: 'Casa de colmo, casa de colmo! Parede, oh, parede da casa de colmo, escuta e reflete. Oh, homem de Shurrupak, filho de Ubara-Tutu, põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deveras construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas.'

"Quando compreendi, eu disse ao meu senhor: 'Sereis testemunha de que honrarei e executarei aquilo que me ordenais, mas como explicarei às pessoas, à cidade, aos patriarcas?' Ea então abriu a boca e falou a mim, seu servo: 'Dize-lhes isto: Eu soube que Enlil está furioso comigo e já não ouso mais caminhar por seu território ou viver em sua cidade; partirei em direção ao golfo para morar com o meu senhor Ea. Mas sobre vós ele fará chover a abundância, a colheita farta, os peixes raros e as ariscas aves selvagens. A noite, o cavaleiro da tempestade vos trará uma torrente de trigo.'

"Ao primeiro brilho da alvorada, toda a minha família se reuniu ao meu redor; as crianças trouxeram o piche e os homens todo o resto necessário. No quinto dia eu aprontei a quilha, montei a ossatura da embarcação e então instalei o tabuado. O barco tinha um acre de área e cada lado do convés media cento e vinte côvados, formando um quadrado. Construí abaixo mais seis conveses, num total de sete, e dividi cada um em nove compartimentos, colocando tabiques entre eles. Finquei cunhas onde elas eram necessárias, providenciei as zingas e armazenei suprimentos. Os carregadores trouxeram o óleo em cestas. Eu joguei piche, asfalto e óleo na fornalha. Mais óleo foi consumido na calafetagem, e mais ainda foi guardado no depósito pelo capitão da nave. Eu abati novilhos para a minha família e matava diariamente uma ovelha. Dei vinho aos carpinteiros do barco como se fosse água do rio, vinho verde, vinho tinto, vinho branco e óleo. Fez-se então um banquete como os que são preparados à época dos festejos do ano-novo; eu mesmo ungi minha cabeça. No sétimo dia, o barco ficou pronto.

"Foi com muita dificuldade então que a embarcação foi lançada à água; o lastro do barco foi deslocado para cima e para baixo até a submersão de dois terços de seu corpo. Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo — os domesticados e os selvagens — e todos os artesãos. Eu os coloquei a bordo, pois o prazo dado por Shamash já havia se esgotado; e ele disse: 'Esta noite, quando o cavaleiro da tempestade enviar a chuva destruidora, entra no barco e te fecha lá dentro.' Era chegada a hora. Caiu a noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva. Tudo estava pronto, a vedação e a calafetagem; eu então passei o timão para Puzur-Amurri, o timoneiro, deixando todo o barco e a navegação sob seus cuidados.

"Ao primeiro brilho da alvorada chegou do horizonte uma nuvem negra, que era conduzida por Adad, o senhor da tempestade. Os trovões retumbavam de seu interior, e, na frente, por sobre as colinas e planícies, avançavam Shul-lat e Hanish, os arautos da tempestade. Surgiram então os deuses do abismo; Nergal destruiu as barragens que represavam as águas do inferno; Ninurta, o deus da guerra, pôs abaixo os diques; e os sete juizes do outro mundo, os Anunnaki, elevaram suas tochas, iluminando a terra com suas chamas lívidas. Um estupor de desespero subiu ao céu quando o deus da tempestade transformou o dia em noite, quando ele destruiu a terra como se despedaça um cálice. Por um dia inteiro o temporal grassou devastadoramente, acumulando fúria à medida que avançava e desabando torrencialmente sobre as pessoas como os fluxos e refluxos de uma batalha; um homem não conseguia ver seu irmão, nem podiam os povos serem vistos do céu. Até mesmo os deuses ficaram horrorizados com o dilúvio; eles fugiram para a parte mais alta do céu, o firmamento de Anu, onde se agacharam contra os muros e ficaram encolhidos como covardes. Foi então que Ishtar, a Rainha do Céu, de voz doce e suave, gritou como se estivesse em trabalho de parto: 'Ai de mim! Os dias de outrora estão virando pó, pois ordenei que se fizesse o mal; por que fui exigir esta maldade no conselho dos deuses? Eu impus as guerras para a destruição dos povos, mas acaso estes povos não pertencem a mim, pois fui eu quem os criou? Agora eles flutuam no oceano como ovas de peixe.' Os grandes deuses do céu e do inferno verteram lágrimas e se calaram.

"Por seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra. Na alvorada do sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou. Eu olhei a face do mundo e o silêncio imperava; toda a humanidade havia virado argila. A superfície do mar se estendia plana como um telhado. Eu abri uma janelinha e a luz bateu em meu rosto. Eu então me curvei, sentei e chorei. As lágrimas rolavam pois estávamos cercados por uma imensidade de água. Procurei em vão por um pedaço de terra. A quatorze léguas de distância, porém, surgiu uma montanha, e ali o barco encalhou. Na montanha de Nisir o barco ficou preso; ficou preso e não mais se moveu. No primeiro dia ele ficou preso; no segundo dia ficou preso em Nisir e não mais se moveu. Um terceiro e um quarto dia ele ficou preso na montanha e não se moveu. Um quinto e um sexto dia ele ficou preso na montanha. Na alvorada do sétimo dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe, mas, não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei uma andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam abaixado; ela comeu, voou de um lado para o outro, grasnou e não mais voltou para o barco. Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses. Coloquei quatorze caldeirões sobre seus suportes e juntei madeira, bambu, cedro e murta. Quando os deuses sentiram o doce cheiro que dali emanava, eles se juntaram como moscas sobre o sacrifício. Finalmente, então, Ishtar também apareceu; ela suspendeu seu colar com as jóias do céu, feito por Anu para lhe agradar. 'Oh, vós, deuses aqui presentes, pelo lápis-lazúli que circunda meu pescoço, eu me lembrarei destes dias como me lembro das jóias em minha garganta; não me esquecerei destes últimos dias. Que todos os deuses se reúnam em torno do sacrifício; todos, menos Enlil. Ele não se aproximará desta oferenda, pois sem refletir trouxe o dilúvio; ele entregou meu povo à destruição.'

"Quando Enlil chegou e viu o barco, ele ficou furioso. Enlil se encheu de cólera contra o exército de deuses do céu. 'Alguns destes mortais escaparam? Ninguém deveria ter sobrevivido à destruição.' Então Ninurta, o deus das nascentes e dos canais, abriu a boca e disse ao guerreiro Enlil: 'E que deus pode tramar sem o consentimento de Ea? Somente Ea conhece todas as coisas.' Então Ea abriu a boca e falou para o guerreiro Enlil: 'Herói Enlil, o mais sábio dos deuses, como pudeste tão insensatamente provocar este dilúvio?

Inflige ao pecador o seu pecado,
Inflige ao transgressor a sua transgressão,
Pune-o levemente quando ele escapar,
Não exageres no castigo ou ele sucumbirá;
Antes um leão houvesse devastado a raça humana
Em vez do dilúvio,
Antes um lobo houvesse devastado a raça humana
Em vez do dilúvio,
Antes a fome houvesse assolado o mundo
Em vez do dilúvio.
Antes a peste houvesse assolado o mundo
Em vez do dilúvio.

Não fui eu quem revelou o segredo dos deuses; o sábio soube dele através de um sonho. Agora reuni-vos em conselho e decidi sobre o que fazer com ele.'

"Enlil então subiu no barco, pegou a mim e a minha mulher pela mão e nos fez entrar no barco e ajoelhar, um de cada lado, com ele no meio. E tocou nossas testas para abençoar-nos, dizendo: 'No passado, Utnapishtim era um homem mortal; doravante ele e sua mulher viverão longe, na foz dos rios.' Foi assim que os deuses me pegaram e me colocaram aqui para viver longe, na foz dos rios."

Nenhum comentário: