A observação do céu sempre esteve na base do conhecimento de
todas as sociedades do passado, submetidas em conjunto ao desdobramento cíclico
de fenômenos como o dia e a noite, as fases da Lua e as estações do ano. Os
indígenas há muito perceberam que as atividades de caça, pesca, coleta e
lavoura estão sujeitas a flutuações sazonais e procuraram desvendar os
fascinantes mecanismos que regem esses processos cósmicos, para utilizá-los em
favor da sobrevivência da comunidade.
Diferentes entre si, os grupos indígenas tiveram em comum a
necessidade de sistematizar o acesso a um rico e variado ecossistema de que
sempre se consideraram parte. Mas não bastava saber onde e como obter
alimentos. Era preciso definir também a época apropriada para cada uma das
atividades de subsistência. Esse calendário era obtido pela leitura do céu. Há
registros escritos sobre sua ligação com os astros desde a chegada dos europeus
ao Brasil, mas é possível que se utilizassem desse conhecimento desde que
deixaram de ser nômades.
É evidente, no entanto, que nem todos os grupos indígenas,
mesmo de uma única etnia, atribuem idêntico significado a um determinado
fenômeno astronômico específico, e a razão disso está no fato de cada grupo ter
sua própria estratégia de sobrevivência. Além disso, considerando que não
dependem, de maneira uniforme, de suas moradias, caça, pesca ou de trabalhos
agrícolas, as constelações sazonais, por exemplo, oferecem aos distintos povos
uma enorme diversidade de interpretação.
Para acessar essa cosmologia é preciso considerar, entre
outros pontos, a localização física e geográfica de cada grupo, como os que
habitam o litoral e o interior, ou diferentes latitudes. Junto à linha do
Equador, por exemplo, não há muito sentido em referir-se às estações do ano em
função de variação da temperatura local. Além de reduzidas, nem sempre essas
oscilações refletem o que se pode caracterizar como verão ou inverno. O clima
da região tropical é caracterizado, fundamentalmente, em função da maior ou
menor abundância de chuvas.
Separados mas Iguais
Durante nossas pesquisas em etnoastronomia tupi-guarani,
tivemos diálogos informais e realizamos observações do céu com pajés de todas
as regiões brasileiras. Além disso, utilizamos documentos históricos que
relatam diversos mitos, constelações e a importância da astronomia no cotidiano
das famílias indígenas.
Das várias famílias do tronco lingüístico tupi, a
tupi-guarani é a mais extensa em número e na distribuição geográfica de suas
línguas, que são várias, do mesmo tronco. São encontrados grupos tupis-guaranis
em todas as partes do Brasil, bem como na Guiana Francesa, Argentina, Paraguai,
Bolívia e Peru.
O que nos incentivou a rea-lizar este trabalho de resgate da
astronomia tupi-guarani foi perceber, em 1991, que o sistema astronômico dos
tupinambá do Maranhão de 1612 é muito semelhante ao utilizado, atualmente,
pelos guaranis do sul do Brasil, embora separados pelas línguas (tupi e
guarani), pelo espaço (mais de 3 mil km, em linha reta) e pelo tempo (quase 400
anos).
As observações do céu que realizamos com os indígenas
permitiram localizar a maioria das constelações tupinambá e de diversas outras
etnias da família tupi-guarani. Verificamos que etnias diferentes - distintas
culturalmente, como seria de se esperar - possuem um conjunto muito semelhante
de conhecimentos astronômicos, utilizados para materializar tanto o calendário
como os sistemas de orientação. Esse conjunto comum se refere, principalmente,
ao Sol, Lua, Vênus, Via Láctea, e às constelações do Cruzeiro do Sul, Plêiades
e das regiões do céu onde se situam Órion e Escorpião, constelações ocidentais
que surgem, respectivamente no verão e no inverno, no hemisfério sul.
Além disso, algumas das constelações dos tupis-guaranis,
utilizadas no cotidiano, são as mesmas de outros índios da América do Sul e dos
aborígines australianos. É o caso da "Ema" e do "Homem
Velho", que também foram relatadas pelo capuchinho francês Claude
d\\`Abbeville. Em 1612, o missionário passou quatro meses entre os tupinambás
do Maranhão, perto da linha do Equador. Seu livro "Histoire de la Mission
de Pères Capucins en l\\`Isle de Maragnan et terres circonvoisins",
publicado em Paris em 1614, é considerado uma das mais importantes fontes da
etnografia dos tupis. Ele registrou o nome de cerca de 30 estrelas e
constelações conhecidas pelos índios da ilha. Infelizmente, identificou apenas
algumas delas. Sempre que nos referirmos aos extintos tupinambás, estaremos
utilizando essa obra de d\\`Abbeville, onde ele afirma: "Poucos entre eles
desconhecem a maioria dos astros e estrelas de seu hemisfério; chamam-nos todos
por seus nomes próprios, inventados por seus antepassados".
Astronomia e Biodiversidade
Os indígenas são profundos conhecedores do seu ambiente,
plantas e animais, nomeando as várias espécies. Os tupis-guaranis, por exemplo,
associam as estações do ano e as fases da Lua com o clima, a fauna e a flora da
região em que vivem. Para eles, cada elemento da Natureza tem um espírito
protetor. As ervas medicinais são preparadas obedecendo a um calendário anual
bem rigoroso.
Em 1758, na 10ª edição de seu livro Systema naturae, o
botânico e médico sueco Karl von Linné (1707-1778) classificou todos os seres
vivos até então conhecidos com as noções de gênero e espécie. Ele incluiu 39
espécies (14 mamíferos, 15 aves, 2 répteis e 8 peixes) das 1.370 catalogadas
pelo astrônomo alemão Georg Marcgrave (1610 -1644), considerado o primeiro
naturalista a estudar a fauna brasileira. Linné considerou os índios guaranis
como "primus verus systematicus", dando, assim, o devido crédito à
contribuição intelectual desta etnia à ciência da sistemática ou taxonomia, por
cuja criação ele é internacionalmente reconhecido.
Os tupis-guaranis, em virtude da longa prática de observação
da Lua, conhecem e utilizam suas fases na caça, no plantio e no corte da
madeira. Eles consideram que a melhor época para essas atividades é entre a lua
cheia e a lua nova (lua minguando), pois entre a lua nova e a lua cheia (lua
crescendo) os animais se tornam mais agitados devido ao aumento de
luminosidade. Certa noite de lua crescente estava observando as constelações
com os guaranis na ilha da Cotinga, Paraná.
De repente, um deles me disse que seria melhor observarmos
quando não houvesse Lua. Rapidamente, com meu conhecimento ocidental, respondi
que estava de acordo, pois o brilho da Lua ofuscava o brilho das estrelas,
embora conseguíssemos enxergar bem a Via Láctea. Ao que ele retrucou dizendo
que, na realidade, o que o incomodava era a quantidade de mosquitos, muito
menor quando não há Lua. Nunca havia percebido essa relação, que de fato
existe, entre as fases da lua e a incidência de mosquitos.
Os guaranis que atualmente habitam o litoral também conhecem
a relação das fases da Lua com as marés. Além disso, associam a Lua e as marés
às estações do ano (observação dos astros e dos ventos) para a pesca artesanal.
Segundo eles, o camarão é mais pescado entre fevereiro e abril, na maré alta de
lua cheia, enquanto a época do linguado é no inverno, nas marés de quadratura
(lua crescente e lua minguante). Em geral, quando saem para pescar, seja no rio
ou no mar, os guaranis já sabem quais as espécies de peixe mais abundantes, em
função da época do ano e da fase da Lua.
Até o ritual do "batismo" (nimongarai ou
nheemongarai, em guarani), em que as crianças recebem seu nome, depende de um
calendário luni-solar e da orientação espacial: o plantio principal do milho
(avaxi) ocorre, geralmente, na primeira lua minguante de agosto. Após a
colheita do milho plantado nessa época é que realizam o batismo das crianças.
Esse evento deve coincidir com a época dos "tempos novos",
caracterizada pelos fortes temporais de verão, geralmente o mês de janeiro. O
nome dado à criança guarani vem de uma das cinco regiões celestes: zênite,
norte, sul, leste e oeste. Cada região possui nomes típicos, representando a
origem das crianças.
A astronomia envolveu todos os aspectos da cultura indígena.
O caráter prático dos seus conhecimentos pode ser reconhecido na organização
social e em condutas cotidianas que eram orientadas por rituais cujas datas
eram definidas pelas posições dos astros.
A comunidade científica conhece muito pouco da astronomia
indígena e da sua relação com o ambiente, patrimônio que pode ser perdido em
uma ou duas gerações pelo rápido processo de globalização, que tende a
homogeneizar as culturas e assim perder as nuances da diversidade. Esse risco
ocorre, também, pela falta de pesquisa de campo e pelas dificuldades em
documentar, avaliar, validar, proteger e disseminar os conhecimentos
astronômicos dos indígenas do Brasil. Atualmente, há um grande interesse
internacional na proteção e conservação do conhecimento tradicional e de
práticas ancestrais de indígenas e das comunidades locais, para a conservação
da biodiversidade.
O Sol e os Pontos Cardeais
Para os tupis-guaranis o Sol é o principal regulador da vida
na Terra e tem grande significado religioso. Todo o cotidiano deles está
voltado para a busca da força espiritual do Sol. Os guaranis, por exemplo,
nomeiam o Sol de Kuaray, na linguagem do cotidiano e de Nhamandu, na
espiritual.
Os tupis-guaranis determinam o meio-dia solar, os pontos
cardeais e as estações do ano utilizando o relógio solar vertical, ou gnômon,
que na língua tupi antiga, por exemplo, chamava-se Cuaracyraangaba. Ele é
constituído de uma haste cravada verticalmente em um terreno horizontal, da
qual se observa a sombra projetada pelo Sol. Essa haste vertical aponta para o
ponto mais alto do céu, chamado zênite. O relógio solar vertical foi utilizado
também no Egito, China, Grécia e em diversas outras partes do mundo.
Na cosmogênese guarani, Nhanderu (Nosso Pai) criou quatro
deuses principais que o ajudaram na criação da Terra e de seus habitantes. O
zênite representa Nhanderu e os quatro pontos cardeais representam esses
deuses. O Norte é Jakaira, deus da neblina vivificante e das brumas que abrandam
o calor, origem dos bons ventos. O Leste é Karai, deus do fogo e do ruído do
crepitar das chamas sagradas. No Sul, Nhamandu, deus do Sol e das palavras,
representa a origem do tempo-espaço primordial. No Oeste, Tupã, é deus das
águas, do mar e de suas extensões, das chuvas, dos relâmpagos e dos trovões.
O calendário guarani está ligado à trajetória aparente anual
do Sol e é dividido em tempo novo e tempo velho (ara pyau e ara ymã,
respectivamente, em guarani). Ara pyau é o período de primavera e verão, sendo
ara ymã o período de outono e inverno.
O dia do início de cada estação do ano é obtido através da
observação do nascer ou do pôr-do-sol, sempre de um mesmo lugar, por exemplo,
da haste vertical. O Sol sempre nasce do lado leste e se põe do lado oeste.
No entanto, somente nos dias do início da primavera e do
outono, o Sol nasce exatamente no ponto cardeal Leste e se põe exatamente no
ponto cardeal Oeste. Para um observador no Hemisfério Sul, em relação à linha
leste-oeste, o nascer e o pôr-do-sol ocorrem um pouco mais para o norte no
inverno e um pouco mais para o sul no verão. Utilizando rochas, por exemplo,
para marcar essas direções, os tupis-guaranis materializavam os quatro pontos
cardeais e as direções do nascer e do pôr-do-sol no início das estações do ano.
Lua e as Marés
Para os tupis-guaranis, a Lua (Jaxi, em guarani), principal
regente da vida marinha, é considerada do sexo masculino, o irmão mais novo do
Sol. A primeira unidade de tempo utilizada pelos tupis-guaranis foi o dia,
medido por dois nasceres consecutivos do Sol. Depois veio o mês (também chamado
jaxi), determinado a partir de duas aparições consecutivas de uma mesma fase da
Lua. Os tupis-guaranis consideravam essa fase como sendo o primeiro filete da
Lua que aparecia do lado oeste, ao anoitecer, depois do dia da lua nova (jaxy
pyau), dia em que a Lua não é visível por se encontrar muito próxima da direção
do Sol.
Além de serem utilizadas como calendário mensal, as fases da
Lua serviam para orientação geográfica, pois a Lua brilha por refletir a luz do
Sol, ficando a sua parte iluminada no lado em que se encontra o Sol. Entre a
lua nova e a lua cheia (jaxy guaxu) o hemisfério iluminado aponta para o lado
oeste, enquanto entre a lua cheia e a lua nova, a indicação é do lado leste. As
fases da Lua também permitiam obter as horas da noite: o primeiro filete,
depois da lua nova, aparece ao anoitecer, do lado oeste, e desaparece minutos
depois, a lua crescente (jaxy endy mbyte) aparece desde o anoitecer até
meia-noite, a lua cheia do pôr-do-sol ao nascer-do-sol e a lua minguante (jaxy
nhenpytu mbyte) fica visível da meia-noite ao amanhecer.
Segundo d\\`Abbeville, "os tupinambás atribuem à Lua o
fluxo e o refluxo do mar e distinguem as duas marés cheias que se verificam na
lua cheia e na lua nova ou poucos dias depois". Assim, mesmo antes dos
europeus, os tupinambás já sabiam que perto dos dias de lua nova e de lua cheia
as marés altas são mais altas e as marés baixas são mais reduzidas do que nos
outros dias do mês. O conhecimento da periodicidade das marés antes dos
europeus pode ser explicado em virtude de a relação entre as marés e as fases
da Lua ser melhor observada entre os trópicos, região em que se localiza a
maior parte do Brasil.
Eclipses e o Fim do Cosmos
Os eclipses sempre espalharam terror por transformarem em
caos a ordem de repetição do Cosmos, de eterno retorno. Aparentemente, diversos
povos antigos podiam prever esses fenômenos. Mas, por falta de registros, não
conhecemos os métodos por eles utilizados. Os tupis-guaranis também observavam
os movimentos do Sol e da Lua e se preocupavam em prever os eclipses.
Um dos mitos tupi-guarani sobre o fenômeno relata que a onça
(xivi, em guarani) sempre persegue os irmãos Sol e Lua. Na ocasião do eclipse
solar (kuaray onheama) ou do lunar (jaxy onheama), os indígenas fazem a maior
algazarra, com o objetivo de espantar a Onça Celeste, pois acreditam que o fim
do mundo ocorrerá quando a ela devorar a Lua, o Sol e os outros astros, fazendo
com que a Terra caia na mais completa escuridão.
No céu, a cabeça da onça desse mito indígena é representada
pela estrela vermelha Antares, da constelação zodiacal do Escorpião, e pela
estrela Aldebaran, também vermelha, da constelação zodiacal do Touro. Essas
duas constelações ficam no zodíaco onde, observados da Terra, passam o Sol, os
planetas e a Lua. Assim, de fato, pelo menos uma noite por mês e um dia por
ano, a Lua e o Sol, respectivamente, aproximam-se de Antares e de Aldebaran.
Os antigos astrônomos não sabiam que era a Terra que
orbitava em torno do Sol (movimento de translação). Ao nascer e ao pôr-do-sol,
observavam que a posição do Sol mudava, dia a dia, em relação às estrelas
fixas, em um movimento cíclico de um ano. Perceberam que os eclipses solares e
lunares ocorriam apenas quando a Lua estava próxima a essa trajetória do Sol
entre as estrelas, no céu. Devido a esta relação com os eclipses, denominaram
essa trajetória aparente do Sol de eclíptica. O mito sobre os eclipses demonstra
o grande conhecimento empírico de astronomia dos tupis-guaranis.
As Crateras Lunares
Lua, irmão do Sol, entrava tateando no escuro, no quarto da
irmã de seu pai, com a intenção de fazer amor com ela. Para saber quem a
importunava todas as noites, sua tia lambuzou os dedos com resina e de noite,
enquanto Lua a procurava, passou a mão em sua face.
No dia seguinte, bem cedo, Lua foi lavar a face para retirar
a resina. No entanto, a substância não saiu, e ele ficou mais sujo ainda. Por
esse motivo, Lua tem sempre a face manchada.
Desde então, a lua nova lava seu rosto, fazendo chover para
tentar tirar as manchas de resina, que ficam mais visíveis quando ela se torna
cheia. Esta fábula ensina aos tupis-guaranis que não devem cometer incesto.
A Mulher da Lua
O planeta Vênus era muito observado pelos tupis-guaranis por
ser, depois do Sol e da Lua, o objeto mais brilhante do céu. Vênus era
utilizado principalmente para orientação, por ser visto pouco antes do nascer
ou logo após o pôr-do-sol, sempre próximo ao Sol. Os indígenas pensavam que se
tratava de duas estrelas que apareciam em períodos diferentes: a estrela
matutina (kaaru mbija), que chamamos de estrela D\\`alva, e a vespertina
(ko\\`e mbija), que chamamos de Vésper, cada uma delas visível por cerca de 263
dias.
Os tupis-guaranis chamam o planeta Vênus, quando aparece
como estrela vespertina, de "Mulher da Lua". Eles contam que a mulher
da Lua é muito linda, vaidosa e nunca envelhece. Ela só fica ao lado do seu
marido enquanto ele é jovem, afastando-se dele à medida que fica mais velho.
Ao anoitecer, no dia seguinte à lua nova, os dois astros se
encontram bem próximos, no lado oeste. Nas noites seguintes, a Lua vai
crescendo e se distanciando de Vênus. Na crescente, Vênus continua
aproximadamente no mesmo lugar, mas a Lua se encontra no alto do céu, perto da
linha norte-sul. Na lua cheia, ao anoitecer, a Lua está no lado leste e sua
mulher, bem afastada, no lado no oeste. Na lua minguante, Vênus e a Lua não são
mais visíveis ao mesmo tempo. Na lua nova, o ciclo recomeça.
Esse mito, que pode ser considerado uma maneira alternativa
de explicar as fases da Lua, nos foi relatado pelos guaranis do Sul do Brasil e
pelos tembés do Norte do país, duas etnias da família tupi-guarani que não têm
contato entre si.
Constelações na Via Láctea
As constelações formam figuras imaginárias, criadas há mais
de 6 mil anos para reunir grupos de estrelas (jaxy tatá), aparentemente
próximas, visíveis a olho nu, tendo em vista que nomear cada uma delas era uma
tarefa difícil. A maioria dos povos antigos observava as constelações ao
anoitecer e as utilizavam como calendário e orientação. Cada cultura tinha as
suas próprias constelações. As constelações dos tupis-guaranis diferem das
concepções das sociedades exteriores ocidentais principalmente em três
aspectos.
Primeiro, as principais constelações ocidentais registradas
pelos povos antigos são aquelas que interceptam o caminho imaginário que
chamamos de eclíptica, por onde aparentemente passa o Sol, e próximo do qual
encontramos a Lua e os planetas. Essas constelações são chamadas zodiacais. As
principais constelações indígenas estão localizadas na Via Láctea (Tapi\\`i
Rape), a faixa esbranquiçada que atravessa o céu, onde as estrelas e as
nebulosas aparecem em maior quantidade, facilmente visível à noite. A Via
Láctea é conhecida como Caminho da Anta ou como a Morada dos Deuses pela
maioria das etnias dos tupis-guaranis.
Os desenhos das constelações ocidentais são feitos pela
união de estrelas. Mas, para os tupis-guaranis, as constelações são
constituídas pela união de estrelas e, também, pelas manchas claras e escuras
da Via Láctea, sendo mais fáceis de imaginar. Muitas vezes, apenas as manchas
claras ou escuras, sem estrelas, formam uma constelação. Os guaranis chamam a Grande
Nuvem de Magalhães de Bebedouro da Anta (Tapi\\`i Huguá) e a Pequena Nuvem de
Magalhães de Bebedouro do Porco-do-Mato (Coxi Huguá).
O terceiro aspecto que diferencia as constelações
Tupis-Guaranis das ocidentais está relacionado ao número delas conhecido pelos
indígenas. A União Astronômica Internacional (UAI) utiliza um total de 88
constelações, distribuídas nos dois hemisférios terrestres, enquanto certos
grupos indígenas já nos mostraram mais de 100 constelações, vistas de sua
região de observação. Quando indagados sobre quantas constelações existem, os
pajés dizem que tudo que existe no céu existe também na Terra, que nada mais
seria do que uma cópia imperfeita do céu. Assim, cada animal terrestre tem seu
correspondente celeste, em forma de constelação.
A Hora pelo Cruzeiro do Sul
O Cruzeiro do Sul (Curuxu) fica em plena Via Láctea, sendo a
constelação mais conhecida dos habitantes do Hemisfério Sul. Ela é formada, em
sua parte principal, por cinco estrelas, quatro delas representando uma cruz, e
uma quinta fora do braço da cruz. Essas estrelas, pela ordem de brilho, são
conhecidas, popularmente, como Magalhães, Mimosa, Rubídea, Pálida e
Intrometida. Magalhães (a mais brilhante) e Rubídea (avermelhada) formam o
braço maior da cruz; Mimosa e Pálida compõem o menor. A Intrometida (a mais
apagada) não consta da representação dessa constelação pelos tupis-guaranis.
O Cruzeiro do Sul está próximo do Pólo Sul Celeste (PSC),
prolongamento do eixo de rotação da Terra no nosso céu, parecendo girar em
torno dele de leste para oeste, devido ao movimento de rotação da Terra de
oeste para leste. Assim, dependendo do dia e da hora, a cruz pode estar de
cabeça para baixo, deitada, inclinada ou em pé, sempre fazendo uma
circunferência em torno do Pólo Sul Celeste.
A posição da constelação do Cruzeiro do Sul é utilizada
pelos tupis-guaranis para determinar os pontos cardeais, o intervalo de tempo
transcorrido durante a noite e as estações do ano. Quando a cruz se encontra em
pé, o prolongamento do seu braço maior aponta para o ponto cardeal Sul. Olhando
para o Sul, às nossas costas temos o Norte, à direita o Oeste e à esquerda, o
Leste.
Tendo em vista que o Cruzeiro do Sul efetua uma volta
completa em cerca de 24 horas, o tempo gasto, por exemplo, para ir da posição
deitada até a posição em pé é de 6 horas. Assim, podemos determinar o intervalo
de tempo transcorrido em uma noite observando duas posições do Cruzeiro do Sul.
O início de cada estação do ano é determinado pelos
tupis-guaranis considerando a posição da cruz ao anoitecer: no outono ela fica
deitada do lado esquerdo do Sul, isto é, para leste; no inverno, fica em pé
apontando para o Sul; na primavera, ela se encontra deitada para o lado oeste e
no verão de cabeça para baixo, abaixo da linha do horizonte, sendo visível
somente após a meia-noite.
As Plêiades e a Chuva
As Plêiades (Eixu, em guarani) são um aglomerado de estrelas
jovens, azuis, que se localizam na constelação ocidental do Touro. A olho nu,
longe da iluminação artificial e sem Lua, podemos ver, normalmente, sete dessas
estrelas e, por isso, as Plêiades são conhecidas, também, como as sete estrelas
ou as sete irmãs. Muitas etnias indígenas utilizavam as Plêiades para construir
seu calendário. Eles consideravam principalmente os dias do nascer helíaco, do
nascer anti-helíaco e do ocaso helíaco das Plêiades.
Cerca de um mês por ano, as Plêiades não são visíveis porque
ficam muito próximas da direção do Sol. O nascer helíaco das Plêiades ocorre
perto do dia 5 de junho, o primeiro dia em que elas se tornam visíveis de novo,
perto do horizonte, no lado leste, antes do nascer do sol. Esse dia marcava o
início do ano.
Por volta do dia 10 de novembro, as Plêiades nascem logo
após o pôr-do-sol, este dia recebe o nome de nascer anti-helíaco das Plêiades, pois
o Sol se encontra no lado oeste e as Plêiades no lado leste. Perto de 1o de
maio, acontece o ocaso helíaco das Plêiades, pois elas desaparecem do lado
oeste, logo após o pôr-do-sol. Depois desse dia, elas não são mais visíveis à
noite, até perto do dia 5 de junho quando ocorre, novamente, seu nascer
helíaco. Pode-se admitir, então, um ano sideral, baseado no nascer helíaco das
Plêiades.
Os tupinambás conheciam muito bem o aglomerado estelar das
Plêiades e o denominavam "Seichu". Quando elas apareciam, afirmavam
que as chuvas iam chegar, como chegavam, efetivamente, poucos dias depois. Como
a constelação aparecia alguns dias antes das chuvas e desaparecia no fim para
tornar a reaparecer em igual época, eles reconheciam perfeitamente o intervalo
de tempo decorrido de um ano a outro. Da mesma maneira, atualmente para os
tembés, que habitam o Norte do Brasil, o nascer helíaco das Plêiades anuncia a
estação da chuva e o seu ocaso helíaco aponta a estação da seca. Para os
guaranis, do Sul do país, o nascer helíaco das Plêiades anuncia o inverno,
enquanto o ocaso helíaco indica a proximidade do verão.
É interessante observar que culturas diferentes, habitando
regiões distintas e vivendo épocas desencontradas, utilizavam as Plêiades como
calendário, mesmo considerando que seu nascer helíaco, nascer anti-helíaco e
ocaso helíaco não correspondessem exatamente ao início das estações do ano.
Pensamos que, além de sua beleza, outro motivo contribui para essa escolha: as
Plêiades estão situa-das a cerca de quatro graus da eclíptica. Por isso, alguns
de seus componentes são freqüentemente ocultos pela Lua e ocasionalmente pelos
planetas do nosso Sistema Solar. Essas ocultações oferecem um belo espetáculo
da Natureza, sendo observadas mesmo a olho nu.
A Constelação da Ema
Na segunda quinzena de junho, quando a Ema (Guyra Nhandu)
surge em sua totalidade ao anoitecer, no lado leste, indica o início do inverno
para os índios do sul do Brasil e o início da estação seca para os do norte.
A constelação da Ema (Rhea americana alba) se localiza numa
região do céu limitada pelo Cruzeiro do Sul e Escorpião. Sua cabeça é formada
pelo Saco de Carvão, nebulosa escura que fica próxima à estrela Magalhães. A
Ema tenta devorar dois ovos de pássaro que ficam peerto de seu bico, representados
pelas estrelas alfa Muscae e beta Muscae.
As estrelas alfa Centauro e beta Centauro estão dentro do
pescoço da Ema. Elas representam dois ovos grandes que a Ema acabou de engolir.
Uma das pernas da Ema é formada pelas estrelas da cauda de Escorpião. As
manchas claras e escuras da Via Láctea ajudam a visualizar a plumagem da Ema.
Conta o mito guarani que a constelação do Cruzeiro do Sul
segura a cabeça da Ema. Caso ela se solte, beberá toda a água da Terra e
morreremos de seca e sede.
O Homem Velho
Na segunda quinzena de dezembro, quando o Homem Velho
(Tuya\\`i) surge totalmente ao anoitecer, no lado leste, trata-se do início do
verão para os índios do sul e o início da estação chuvosa para os do norte.
A constelação do "Homem Velho" é formada pelas
constelações ocidentais do Touro e de Órion. A cabeça do Homem Velho é formada
pelas estrelas do aglomerado estelar Híades, em cuja direção se encontra
Aldebaran, a estrela mais brilhante da constelação do Touro, de cor
avermelhada. Acima da cabeça do Homem Velho fica o aglomerado estelar das
Plêiades, um penacho que ele tem amarrado à cabeça.
A estrela Bellatrix fica na virilha do Homem Velho, sendo
que a estrela vermelha Beltegeuse representa o lugar em que sua perna foi
cortada. O Cinturão de Órion (Três Marias) formado pelas estrelas Mintaka,
Alnilam e Alnitak, representa o joelho da perna sadia. A estrela Saiph
representa o pé da perna sadia. O braço esquerdo do Homem Velho é constituído
por estrelas do escudo de Órion. Na sua mão direita ele segura um bastão para
se equilibrar.
Conta o mito guarani que essa constelação representa um
homem casado com uma mulher muito mais jovem do que ele. Sua esposa ficou
interessada no irmão mais novo do marido e, para ficar com o cunhado, matou o
marido, cortando-lhe a perna na altura do joelho direito. Os deuses ficaram com
pena do marido e o transformaram em uma constelação.
Itacoatiara de IngáPode-se dizer que existem dois tipos
principais de constelação indígena: uma relacionada ao clima, à fauna e à flora
do lugar, conhecida pela maioria da comunidade e que regula o cotidiano da
aldeia; a outra está relacionada aos espíritos indígenas, sendo conhecida, em
geral, apenas pelos pajés e é mais difícil de visualizar. Os guaranis, por
exemplo, chamam de Nhanderu a mancha escura que aparece perto da constelação
ocidental do Cisne. O Deus Maior Guarani aparece sentado em seu banco sagrado,
utilizando seu cocar divino e segurando o Sol e a Lua em suas mãos. Ele anuncia
a primavera.
Às margens do rio Ingá, na Paraíba, existe um monólito de
rocha gnaisse, duríssima, cuja superfície está recoberta por cerca de 500
inscrições de baixo-relevo, que muitos pesquisadores afirmam serem únicas no
mundo, Trata-se da famosa Itacoatiara de Ingá, com cerca de 23 m de largura e 3 m de altura. Há várias
hipóteses sobre a origem dos grafismos. A nossa é de que Itacoatiara de Ingá
serviu de local para rituais religiosos relacionados a elementos astronômicos.
Identificamos ali alguns espíritos da mitologia tupi-guarani, e supomos que o
painel indica parte da Vila Láctea. Diversos pajés reconheceram alguns dos
espíritos nas gravuras, puderam nomeá-los e localizá-los no céu.
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